A revolução tecnológica impulsionada pela inteligência artificial (IA) está em pleno apogeu, mas nem todos estão encantados com ela. Desde o momento em que a Apple anunciou seus planos para integrar IA generativa no iPhone, ficou claro que essa tecnologia seria onipresente. Hoje em dia, os modelos de linguagem grande (LLM, na sigla em inglês) estão prontos para aparecer na maioria dos smartphones do mundo, gerando imagens e textos em aplicativos de mensagens e e-mails.
Mas, será que essa onipresença da IA é algo que todos desejamos? Segundo uma pesquisa recente, a maioria dos americanos está preocupada com o impacto da IA no emprego, e três em cada quatro acreditam que será utilizada para interferir nas próximas eleições presidenciais. Além disso, os produtos de IA nem sempre foram bem recebidos; o lançamento do “Resumo de IA” do Google foi um desastre, e os bots da OpenAI foram criticados por fornecer informações falsas e não confiáveis.
Diante dessa crescente desconfiança, surgiu uma nova tendência: o “Livre de IA“. Este movimento busca rotular produtos e serviços como completamente feitos por humanos, uma espécie de “100 por cento orgânico” para o mundo digital. Empresas de diversos setores estão adotando esse rótulo como uma forma de se diferenciarem em um mercado saturado de tecnologia artificial. Mas, será que isso é apenas uma estratégia de marketing ou há algo mais profundo por trás desse rótulo?
A resposta parece ser um pouco de ambos. As preocupações éticas e de qualidade estão no coração dessa tendência. Os produtos gerados por IA foram criticados por sua falta de autenticidade e precisão. Além disso, o fato de que essas tecnologias são treinadas com o trabalho de criativos que não deram seu consentimento e não foram compensados gerou uma rejeição significativa.
Empresas que lideram a carga “Livre de IA”
The Atlantic destacou em seu artigo como diversas empresas estão aproveitando a tendência “Livre de IA” para captar a atenção de consumidores preocupados com a autenticidade e a ética na produção de conteúdos. Entre essas companhias estão tanto gigantes corporativos como novas startups inovadoras.
Um exemplo notável é Dove, que recentemente celebrou o vigésimo aniversário de sua “Campanha pela Beleza Real” com uma forte declaração contra o uso de IA. Em um comunicado de imprensa, a empresa prometeu não usar inteligência artificial para representar mulheres reais em sua publicidade, buscando assim promover uma representação autêntica e sem retoques digitais. Esse movimento gerou uma avalanche de manchetes elogiosas e ressoou profundamente com os consumidores que valorizam a autenticidade nas campanhas publicitárias.
Outro caso interessante é o da Discover, que lançou um comercial com a atriz Jennifer Coolidge criticando a crescente presença de robôs no serviço ao cliente. No anúncio, Coolidge exclama: “Todo dia vocês soam mais humanos, robôs!”, ao que um representante da Discover responde assegurando que em sua companhia todos podem falar com um humano. Essa mensagem, embora claramente desenhada para captar a atenção, reflete uma preocupação real entre os consumidores sobre a desumanização do serviço ao cliente.
Entre as startups que adotaram o rótulo “Livre de IA” destaca-se Cara, um app social e de portfólio para artistas que proibiu explicitamente o uso de arte gerada por IA em sua plataforma. Fundada pela artista Jingna Zhang, Cara viu um crescimento explosivo em sua base de usuários, que aumentou de 40.000 para quase um milhão em questão de dias após o anúncio da Meta sobre o uso de dados públicos para treinar suas IAs. Zhang declarou que queria uma plataforma que protegesse o trabalho dos artistas e oferecesse um espaço livre da influência da IA, uma visão que claramente ressoou com muitos criativos.
Além disso, empresas como Inqwire começaram a se destacar por sua postura anti-IA. Essa startup tecnológica oferece um diário inteligente que ajuda os usuários a explorar temas significativos em sua escrita sem recorrer a modelos de linguagem grande. Em seu site, Inqwire proclama com orgulho: “100% Livre de LLMs”, sublinhando seu compromisso de não utilizar IA em seus produtos. Jill Nephew, uma das fundadoras, explicou que seus clientes valorizam ferramentas cujo funcionamento podem entender e defender, em contraste com a opacidade de muitas soluções baseadas em IA.
O Futuro dos Produtos e Serviços Humanizados
No artigo da The Atlantic, analisa-se como a proliferação de conteúdo gerado por IA provocou uma reação considerável em diversas indústrias. Essa tendência não está sendo adotada apenas por grandes corporações e startups tecnológicas, mas também está influenciando setores criativos e a percepção do público sobre a qualidade e autenticidade dos produtos e serviços.
Um dos exemplos mais claros dessa resistência é o movimento Not by AI, uma organização que oferece um distintivo para download para que qualquer pessoa possa usar e declarar que seu conteúdo é 100% humano. Atualmente, mais de 264.000 páginas web exibem esse distintivo, refletindo uma ampla aceitação da iniciativa. Além disso, estações de rádio e festivais de arte, como o Festival de Artes Cômicas de Perth, proibiram explicitamente o uso de mídias geradas por IA em seus eventos, reafirmando o valor da criatividade humana.
No âmbito dos meios de comunicação, sites como 404 Media se destacaram por seu enfoque “Mídia para humanos, por humanos”, posicionando-se como baluartes da resistência contra a IA em um ecossistema digital dominado por gigantes tecnológicos como Google e Meta. Esses esforços são vistos como uma forma de protesto e um sinal de descontentamento frente às crescentes incursões da IA na vida cotidiana.
No entanto, a pergunta que se coloca é: o que está sendo sacrificado nessa transição para uma economia digital cada vez mais dominada pela IA? A qualidade, a ética e a segurança dos produtos gerados por IA são áreas de preocupação constante. Os serviços de IA generativa continuam propensos a erros, “alucinações” e desinformação, além de serem ferramentas potenciais para fraudes e criação de conteúdo enganoso.
Os rótulos “Livre de IA” buscam certificar que um produto ou serviço é autêntico e de alta qualidade, semelhante ao que fizeram os rótulos de alimentos orgânicos em seu momento.
No entanto, é importante reconhecer que o custo e a dificuldade de verificar esses rótulos podem limitar seu impacto, assim como ocorreu com os alimentos orgânicos. O verdadeiro desafio será manter a integridade dessa nova certificação enquanto se constrói uma economia digital que valorize e proteja o trabalho humano.
Em última análise, a tendência “Livre de IA” representa mais do que uma simples estratégia de marketing. É um chamado para preservar o valor do trabalho humano em um mundo onde a automação e a inteligência artificial avançam a passos largos. Como vimos com os exemplos da Dove, Discover, Cara e Inqwire, empresas e consumidores estão começando a perceber que a autenticidade e a criatividade humana são aspectos essenciais que não devem ser perdidos na corrida tecnológica.